“Nós conhecemo-nos? Não sei se nos conhecemos. Acho que não. Se sim, tinhas-me cumprimentado como uma pessoa a sério e perguntado como estou hoje. Com esse medo a apertar a minha mão e a dizeres-me o teu nome completo, é porque não me conheces de certeza.”
Não há casos académicos como este, nem livros que nos preparem para enfrentarmos o terror da loucura vestida em pijamas brancos, nas mesas da sala de convívio. É preciso não ter medo, é preciso não vacilar nem por um instante. Ou a loucura absorve-nos.
“Sabes, eu aqui sou diferente. Não te rias, sou mesmo. Não sou um maluco, como os outros que aqui estão. Eu sei muito bem o meu papel. Sabes qual é o meu papel? E o teu? Eu sei qual é o nosso. Toda a gente está aqui iludida. Os malucos acham que algum dia vão ser livres. Os médicos acham que vão curar alguém. É tudo mentira. Este lugar é um sítio sem retorno. Engraçado, não é? É como a própria loucura. Uma espécie de jaula perpétua. Eu sou o único que estou acima desta gente toda. Eles não sabem onde já estive nem o que já fiz.”
Ouvimos falar disso na faculdade. Existem dois tipos de memória explícita: a semântica, que guarda factos que aprendemos, e a episódica, que guarda factos que vivemos. E depois há quem misture tudo. Pacientes extremamente articulados e inteligentes, mas que vivem a sua vida mais a vida de todas as pessoas que conheceram ou de quem ouviram falar. São personagens na sua própria história. Tanto se recordam dos seus pais verdadeiros como de terem combatido ao lado de Júlio César. Ora são malucos num hospital, ora são uma pessoa sobre a qual em temos leram num jornal.
“Sabes que eu não pertenço cá. Eu não sou como os outros malucos nem como os médicos. Eu não pertenço aqui. Eu não sou de cá. Na verdade, eu sou ministro. É por isso que estou com este fato vestido. Aliás, até estou atrasado para uma reunião. Hoje vou fechar um acordo que vai render milhões ao filho de um amigo do meu assessor. A minha vida é assim. Esse é o meu papel. Tenho um cargo tão pomposo e na verdade não mando nada. É uma loucura, digo-te. Mas nós já nos conhecemos? Eu já falei contigo antes?”
Alguns desses malucos, devido a maus tratos ou a stress traumático, têm uma forma de amnésia que os leva a perderem a memória de curto prazo, tornando as suas vidas mais trágicas, os seus universos interiores mais pobres. Não só são personagens de si mesmos, como não podem acrescentar mais personagens a essa história unipessoal. No teatro das suas vidas, repetem sempre as mesmas personagens, representam todos os papéis sempre na mesma peça. Não conseguem acrescentar-lhe nada de novo. E também não se lembram de nada que lhes dizem.
“Acho que nunca falei contigo. Mas também, como é que tu poderias saber? Eu sei bem como tu és. Tu na verdade não queres saber de mim, não és capaz de querer saber de mim. Eu sou só mais um. Seja como for, não te lembrarias de mim. E ainda bem. Senão, não quereria falar contigo. Bom, tenho que ir para a minha reunião.”
Na verdade, eu não me interesso pelos malucos. Nem os escuto. Como sempre, levanto-me da mesa sem permitir que ele me dê uma resposta. Há anos venho cá falar em monólogo, dizer o que não posso dizer em público a alguém que não se vai lembrar que eu o disse, a alguém que não é nem capaz de me reconhecer. Digo o que me apetece. Não me preocupo em ser articulado nem em fazer sentido. Falo sem discursar. Depois saio, a tempo das minhas reuniões, onde sou de novo a fachada que sai nos jornais. Há quem vá ao hospital falar com médicos – eu vou falar para os malucos. E isso é o que me permite suportar a loucura lá fora.
Não há casos académicos como este, nem livros que nos preparem para enfrentarmos o terror da loucura vestida em pijamas brancos, nas mesas da sala de convívio. É preciso não ter medo, é preciso não vacilar nem por um instante. Ou a loucura absorve-nos.
“Sabes, eu aqui sou diferente. Não te rias, sou mesmo. Não sou um maluco, como os outros que aqui estão. Eu sei muito bem o meu papel. Sabes qual é o meu papel? E o teu? Eu sei qual é o nosso. Toda a gente está aqui iludida. Os malucos acham que algum dia vão ser livres. Os médicos acham que vão curar alguém. É tudo mentira. Este lugar é um sítio sem retorno. Engraçado, não é? É como a própria loucura. Uma espécie de jaula perpétua. Eu sou o único que estou acima desta gente toda. Eles não sabem onde já estive nem o que já fiz.”
Ouvimos falar disso na faculdade. Existem dois tipos de memória explícita: a semântica, que guarda factos que aprendemos, e a episódica, que guarda factos que vivemos. E depois há quem misture tudo. Pacientes extremamente articulados e inteligentes, mas que vivem a sua vida mais a vida de todas as pessoas que conheceram ou de quem ouviram falar. São personagens na sua própria história. Tanto se recordam dos seus pais verdadeiros como de terem combatido ao lado de Júlio César. Ora são malucos num hospital, ora são uma pessoa sobre a qual em temos leram num jornal.
“Sabes que eu não pertenço cá. Eu não sou como os outros malucos nem como os médicos. Eu não pertenço aqui. Eu não sou de cá. Na verdade, eu sou ministro. É por isso que estou com este fato vestido. Aliás, até estou atrasado para uma reunião. Hoje vou fechar um acordo que vai render milhões ao filho de um amigo do meu assessor. A minha vida é assim. Esse é o meu papel. Tenho um cargo tão pomposo e na verdade não mando nada. É uma loucura, digo-te. Mas nós já nos conhecemos? Eu já falei contigo antes?”
Alguns desses malucos, devido a maus tratos ou a stress traumático, têm uma forma de amnésia que os leva a perderem a memória de curto prazo, tornando as suas vidas mais trágicas, os seus universos interiores mais pobres. Não só são personagens de si mesmos, como não podem acrescentar mais personagens a essa história unipessoal. No teatro das suas vidas, repetem sempre as mesmas personagens, representam todos os papéis sempre na mesma peça. Não conseguem acrescentar-lhe nada de novo. E também não se lembram de nada que lhes dizem.
“Acho que nunca falei contigo. Mas também, como é que tu poderias saber? Eu sei bem como tu és. Tu na verdade não queres saber de mim, não és capaz de querer saber de mim. Eu sou só mais um. Seja como for, não te lembrarias de mim. E ainda bem. Senão, não quereria falar contigo. Bom, tenho que ir para a minha reunião.”
Na verdade, eu não me interesso pelos malucos. Nem os escuto. Como sempre, levanto-me da mesa sem permitir que ele me dê uma resposta. Há anos venho cá falar em monólogo, dizer o que não posso dizer em público a alguém que não se vai lembrar que eu o disse, a alguém que não é nem capaz de me reconhecer. Digo o que me apetece. Não me preocupo em ser articulado nem em fazer sentido. Falo sem discursar. Depois saio, a tempo das minhas reuniões, onde sou de novo a fachada que sai nos jornais. Há quem vá ao hospital falar com médicos – eu vou falar para os malucos. E isso é o que me permite suportar a loucura lá fora.
Adorei como entrelaçaste a fala com os pensamentos da personagem e o próprio conteúdo de ambas.
ResponderEliminarEra mesmo algo deste género que gostava de ver, loucura do lado do "louco", exposta de uma maneira compreensível e não "reprovável" :)
No geral, gostei bastante tanto da tua escrita como do texto em si :D
É a falta de referencial que aprecio no teu texto.
ResponderEliminarA loucura não tem referencial.
Gostei!
O teu texto é assustador. Pela sua veracidade, pela sua perfeita correspondencia com a realidade.
ResponderEliminarE concordo inteiramente com a Alice: o que aprecio no teu texto é a falta de referencial, quase é posto em causa a autenticidade do referencial onde eu escrevo este comentario.
Porque quando nao ha referencial é assutador. Nao ha identidade.
E era tão bom se cada um pudesse ter uma dose de loucura que pudesse usar como, quando e onde quisesse. Porque nem sempre é preciso viver em sociedade, às vezes é bom podermo-nos sentir loucos.
ResponderEliminarMas, como a tua personagem, só quando nos excluímos dessa mesma sociedade podemos ser loucos à vontade. Só junto deles.
Gostei muito do texto :)