terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Desafio XLV - Resposta

Sabe, amigo, quando as pessoas dizem, "a minha aldeia fica no interior", geralmente querem dizer que fica junto à fronteira com Espanha. Pois esta minha aldeia é mesmo no interior a Portugal. Estamos condenados a viver longe de tudo, seja das grandes cidades, seja de outro país. Ainda assim, a meio de Agosto a terra enche-se com turistas. São quase todos espanhóis. E vêm quase todos por causa deste homem que aqui está nesta estátua acima destes degraus onde estamos sentados. É o poeta Ernesto, homem da terra, e que defendeu a terra como ninguém. Na estátua ele está curvado, de samarra e chapéu, com os Lusíadas debaixo do braço, porque é assim que ele andava quando era velho. É por ele que os espanhóis cá vêm.

Ainda hoje de manhã, estava eu aqui a fumar quando passa um casal. Ela perguntou a ele, "mira, que es esto?", e apontou para as grandes palavras escritas a tinta preta, que secaram escorrendo das costas da estátua do poeta. Aproximei-me deles, perguntei-lhes se queriam escutar a história. Eu falo bem espanhol.

Comecei por lhes dizer que só sei tanto sobre ele porque quando o Ernesto morreu entrevistei a família e os amigos para o jornal da terra. Até fui falar com os amigos de infância dele. E todos disseram que se havia alguém por quem eles não davam um chavo, era pelo Ernesto quando era criança. Era magro e branco, parecia doente. Não falava nas aulas, e os pais abusavam dele com trabalho no campo. Tinha um irmão mais velho que não lhe ligava e andou imigrado na Europa. Mas o jovem Ernesto não se queixava. Aliás, parecia feliz. Viam-no sempre a rir sozinho enquanto nadava no rio. Dizia-se que ninguém nadava melhor nem mais longe do que ele. Era como se tivesse nascido na água.

Depois pouco se sabe. Foi para Coimbra estudar, mas mal começou o curso já estava cá na terra outra vez. Disse que não se deu lá. A verdade é que mesmo estando fora só uns meses, quando chegou ninguém o reconhecia. Parecia tristonho, andava sempre com discos da Amália, e todos os Domingos só se dava com ele na igreja. Foi por essa altura que começaram a vê-lo pela aldeia a escrever numas folhas. Uns meses cá, e desapareceu de novo. Os pais diziam que tinha ido para Lisboa e que andava a escrever para um jornal. Ele mandava cartas só aos pais, com os poemas que escrevia – e que poemas. Os pais mostravam a toda a gente com orgulho. Um rapaz quase sem educação que mal tinha saído da terra, andava a deslumbrar o mundo todo em Lisboa. Ele escrevia numa rima simples, mas que falava às gentes das suas vidas e dos seus problemas. Falava da natureza e do campo. Era muito bonito.

Voltou de Lisboa com mulher e filhos, e depois disso não saiu mais da terra. Dizia que Lisboa era só mal intencionados e avarentos, e que se sentia mal na cidade. Na aldeia, sentia-se protegido, e era aqui que queria que os seus filhos crescessem, protegidos também. E os anos passaram. Publicaram sabe-se lá quantos livros dele. Os jornalistas vinham de lá longe, do Porto e de Lisboa, falar com ele ao café da terra, onde passava tardes agarrado aos papeis.

Um dia veio cá um jornalista espanhol, porque um livro dele tinha chegado até lá. E ele reagiu muito mal ao indivíduo. Disse-lhe que só lhe falava em português. Que estava na terra dele, e que era a língua dele. O espanhol foi dizer tão mal dele que nunca mais nenhum tentou voltar. Houve para aí que tivesse dito ao Ernesto que ele tinha que ser mais dado. Um homem com o talento dele merecia ser reconhecido muito para além de onde nasceu. Ele irritava-se com isso. A resposta dele, que era sempre a mesma, ficou famosa. Dizia que a sua pátria é a sua língua, e que era por ela que haveria de ser famoso. Pela língua de Camões. Portugal é uma nação velha, mais velha que as demais, e merece respeito. E afinal, burro velho não aprende línguas.

Passaram mais de muitos anos. O povo quis fazer-lhe uma estátua bem no largo da aldeia. Ele já não era novo nessa altura. A idade já pesava, ele já andava curvado e era difícil falar-lhe. A mulher já tinha morrido e os filhos, para grande mágoa sua, imigraram. Estava mais e mais centrado sobre si. Passava horas sentado nestes mesmos degraus abaixo da estátua onde estamos.

Até que um dia diz-se que um casal espanhol estava de passagem aqui pela aldeia. Ela olhou para a estátua e disse "mira, que es esto?", e o marido respondeu-lhe "es un coño cualquier nacionalista". E o coração do velho gelou. Ele percebeu o que eles disseram, e gritou com eles, e tentou explicar-lhes que não era nada disso. Mas eles não entendiam o português da aldeia que o velho falava, e acabaram por fugir dele. Dizem que ele nesse dia viu que a língua de Camões só fez com que ninguém o entendesse. Para todos os efeitos, se não o liam como deve ser, era como se ele não escrevesse.

E o velho Ernesto, depois disso, passou meses fechado dentro de casa. Dizem que quando saiu foi para ir ao café central ser entrevistado por um jornalista que tinha vindo de Madrid. Recebeu-o como a um amigo, falou-lhe em espanhol e deu-lhe várias folhas com os seus poemas escritos em inglês. Traduzidos por ele mesmo. E os poemas dele começaram a vender-se muito bem.

Coitado, ele é que já não aproveitou o dinheiro. O Ernesto morreu pouco depois. No dia em que morreu, alguém deixou aqui esta frase escrita a letras pretas escorridas: "línguas velhas só dão para burros". Há quem jure que viu o próprio Ernesto, horas antes de falecer, a pintar estas palavras nas costas da própria estátua. E por isso o velho nunca as apagou.

Vejo que o amigo não acredita neste fim, pois não? O casal espanhol a quem contei esta história de manhã acreditou. Sorriram muito para mim e disseram "que bien". Mas depois cada um só me deu dois euros. Duas moedinha. Sim, lá por a moeda dos dois euros ser a moedinha maior, não deixa de ser uma moedinha. E agora à tarde está a ser ainda mais fraco. Tenho que inventar uma história melhor, porque a dois euros de cada vez não arranjo o suficiente para me ir embora deste fim de Mundo. Compreende, amigo?